domingo, 19 de maio de 2013

Obras poéticas de Cora Coralina


Obras Poéticas:



Cidade de Santos
Sombras de Martim Afonso.
Brás Cubas, Navarro, Anchieta.
Mangue pestilento.
Tabas do íncola bravio.
Brasil novo, minha gente.
Revivo os dias do Brasil passado,
nestas praias de Santos,
batidas de sol e beijadas pelo Atlântico.
Evocação do burgo, inicial e rude.
Uma coroa de terra, ressaindo do escuro charco,
cerrada de morros inóspitos, agressivos.
Pântano, mangue, praias submersas, o lagamar.
A bota ferrada do conquistador
avança imperativa e audaz.
Na baliza do trabuco alçado
a planta firme do negro,
os artelhos ágeis e sutis do índio.
Apontando o mostrador do Tempo.
Traçando rumos à História do futuro,
os vultos austeros de Nóbrega,
José de Paiva, Anchieta.
O descobridor valente avança destemido.
Vence Paranapiacaba e, alargando trilhas,
sobe lentamente, decidido.
Conquista a serrania imensa.
Firma-se no Planalto,
e gesta Piratininga.
Revejo os dias do Brasil passado
nesta cidade autêntica no estilo lusitano.
Nestas velhas igrejas de barroco original.
Nestas ruas estreitas, desiguais.
Nestas frentes vestidas de azulejos.
Nos portais de pedra destas casas de beirais.
Revivo as eras do Brasil primevo
nestas ruas de Santos, de nomes legendários:
Manoel da Nóbrega, Brás Cubas,
Fernão Dias, Tibiriça, Anchieta.
Escola de Sagres... Caravelas e veleiros.
Naus do descobrimento.
Mestres marinheiros,
reis dos mares oceanos.Marujos e gajeiros.
Velho Portugal de meus avós.
Rudo tronco ancestral, genealógico.
Minas e bandeiras, cidades e forais.
Unidade de raça, de língua, de ética, de costumes.
Heredos e atavismos, nômades e sedentários...
Assimilação e repulsa.
Afro, luso, ameríndio.
Tateio entre as raças donde provenho
para o desconhecido dos destinos.
Combatendo a mim própria,
procuro conjugar estranha sensação
de ser e de não ser...
Afro, lusitano e bugre
- sou a herança hesitante de vós três.
Praias de Santos...
Íncolas e lusos.
Fidalgos e plebeus.
Negros da Costa d'África.
Piratas e salteadores.
Traficantes e bastardos.
Frades e judeus
pisaram estas areias
e se acoitaram nestes recantos.

Cora Coralina

Considerações de Aninha

de 
Melhor do que a criatura,
fez o criador a criação.
A criatura é limitada.
O tempo, o espaço,
normas e costumes.
Erros e acertos.
A criação é ilimitada.
Excede o tempo e o meio.
Projeta-se no Cosmos.




Eu Voltarei
Meu companheiro de vida será um homem corajoso de trabalho,
servidor do próximo,
honesto e simples, de pensamentos limpos.
Seremos padeiros e teremos padarias.
Muitos filhos à nossa volta.
Cada nascer de um filho
será marcado com o plantio de uma árvore simbólica.
A árvore de Paulo, a árvore de Manoel,
a árvore de Ruth, a árvorede Roseta.
Seremos alegres e estaremos sempre a cantar.
Nossas panificadoras terão feixes de trigo enfeitando suas portas,
teremos uma fazenda e um Horto Florestal.
Plantaremos o mogno, o jacarandá,
o pau-ferro, o pau-brasil, a aroeira, o cedro.
Plantarei árvores para as gerações futuras.
Meus filhos plantarão o trigo e o milho, e serão padeiros.
Terão moinhos e serrarias e panificadoras.
Deixarei no mundo uma vasta descendência de homens
e mulheres, ligados profundamente
ao trabalho e à terra que os ensinarei a amar.
E eu morrerei tranquilamente dentro de um campo de trigo ou
milharal, ouvindo ao longe o cântico alegre dos ceifeiros.
Eu voltarei...
A pedra do meu túmulo
será enfeitada de espigas de trigo
e cereais quebrados
minha oferta póstuma às formigas
que têm suas casinhas subterra
e aos pássaros cantores
que têm seus ninhos nas altas e floridas
frondes.
Eu voltarei...


Mãe
Renovadora e reveladora do mundo
A humanidade se renova no teu ventre.
Cria teus filhos,
Não os entregues à creche.
Creche é fria, impessoal.
Nunca será um lar
Para teu filho.
Ele, pequenino, precisa de ti.
Não o desligues da tua força maternal.

Que pretendes, mulher?
Independência, igualdade de condições...
Empregos fora do lar?
És superior àqueles
Que procuras imitar.
Tens o dom divino
De ser mãe
Em ti está presente a humanidade.

Mulheres não te deixem castrar.
Será um animal somente de prazer
E às vezes nem mais isso.
Frígida, bloqueada, teu orgulho te faz calar.
Tumultuada, fingindo ser o que não és.
Roendo o teu osso negro da amargura.

Cântico do calvário

À memória de meu Filho
Morto a 11 de dezembro de 1863

Eras na vida a pomba predileta
Que sobre um mar de angústias conduzia
O ramo da esperança. Eras a estrela
Que entre as névoas do inverno cintilava
Apontando o caminho ao pegureiro.

Eras a messe de um dourado estio.
Eras o idílio de um amor sublime.
Eras a glória, a inspiração, a pátria,
O porvir de teu pai! - Ah! No entanto,
Pomba, - varou-te a flecha do destino!

Astro, - engoliu-te o temporal do norte!
Teto, - caíste!- Crenças já não vivem!
Correi, correi, oh! Lágrimas saudosas,
Legado acerbo da ventura extinta,
Dúbios archotes que a tremer clareiam
A lousa fria de um sonhar que é morto!

Correi! Um dia vos verei mais belas
Que os diamantes de Odir e de Golconda
Fulgurar na coroa de martírios
Que me circunda a fronte cismadora!
São mortos para mim da noite os fachos,
Mas Deus vos faz brilhar, lágrimas santas,
E à vossa luz caminharei nos ermos!

Estrelas do sofrer, gotas de mágoa,
Brando orvalho do céu! Sede benditas!
Oh! Filho de minh'alma! Última rosa
Que neste solo ingrato vicejava!
Minha esperança amargamente doce!

Quando as garças vierem do ocidente
Buscando um novo clima onde pausarem,
Não mais te embalarei sobre os joelhos,
Nem de teus olhos no cerúleo brilho
Acharei um consolo a meus tormentos!

Não mais invocarei a musa errante
Nesses retiros onde cada folha
Era um polido espelho de esmeralda
Que refletia os fugitivos quadros
Dos suspirados tempos que se foram!

Não mais perdido em vaporosas cismas
Escutarei ao pôr-do-sol, nas serras,
Vibrar a trompa sonorosa e leda
Do caçador que aos lares se recolhe!
Não mais! A areia tem corrido, e o livro.
De minha infanda história está completo!

Pouco tenho de andar! Um passo ainda
E o fruto de meus dias, negro, podre,
Do galho eivado rolará por terra!
Ainda uns trenam, e o vendaval sem freio.
Ao soprar quebrará a última fibra
Da lira infausta que nas mãos sustenho!

Tornei-me o eco das tristezas todas
Que entre os homens achei! O lago escuro
Onde o clarão dos fogos da tormenta
Miram-se as larvas fúnebres do estrago!
Por toda a parte em que arrastei meu manto
Deixei um traço fundo de agonias!...

Oh! Quantas horas não gastaram, sentado.
Sobre as costas bravias do Oceano,
Esperando que a vida se esvaísse
Como um floco de espuma, ou como o friso.
Que deixa n'água o lenha do barqueiro!

Quantos momentos de loucura e febre
Não consumi perdido nos desertos,
Escutando os rumores das florestas,
E procurando nessas vozes torvas
Distinguir o meu cântico de morte?

Quantas noites de angústias e delírios
Não velei, entre as sombras espreitando.
A passagem veloz do gênio horrendo
Que o mundo abate ao galopar infrene
Do selvagem corcel!... E tudo embalde!

A vida parecia ardente e doida
Agarrar-se a meu ser!... E tu tão jovem,
Tão puro ainda, ainda n'alvorada,
Ave banhada em mares de esperança,
Rosa em botão, crisálida entre luzes,
Foste o escolhido na tremenda ceifa!

Ah! Quando a vez primeira em meus cabelos
Senti bater teu hálito suave:
Quando em meus braços te cerrei, ouvindo.
Pulsar-te o coração divino ainda;
Quando fitei teus olhos sossegados,
Abismos de inocência e de candura,
E baixo e a medo murmurei: meu filho!

Meu filho! Frase imensa, inexplicável,
Grata como o chorar de Madalena
Aos pés do Redentor... Ah! Pelas fibras
Senti rugir o vento incendiado
Desse amor infinito que eterniza
O consórcio dos obres que se enredam
Dos mistérios do ser na teia augusta
Que prende o céu a terra e a terra aos anjos!

Que se expande em torrentes inefáveis
Do seio imaculado de Maria!
Cegou-me tanta luz! Errei, fui homem!
E de meu erro a punição cruenta
Na mesma glória que me elevou aos astros,
Chorando aos pés da cruz, hoje padeço!

O som da orquestra, o retumbar dos bronzes,
A voz mentida de rafeiros bardos,
Torpe alegria que circunda os berços
Quando a opulência doura-lhes as bordas,
Não te saudaram ao sorrir primeiro,
Clícia mimosa rebentada à sombra!

Mas, ah! Se pompas, esplendor faltaram-te,
Tiveste mais que os príncipes da terra!
Templos, altares de afeição sem termos!
Mundos de sentimento e de magia!
Cantos ditados pelo próprio Deus!

Oh! Quantos reis que a humanidade avilta,
E o gênio esmaga dos soberbos tronos,
Trocariam a púrpura romana
Por um verso, uma nota, um som apenas.
Dos fecundos poemas que inspiraste!
Que belos sonhos! Que ilusões benditas!

Do cantor infeliz lançaste à vida,
Arco-íris de amor! Luz da aliança,
Calma e fulgente em meio da tormenta!
Do exílio escuro a cítara chorosa
Surgiu de novo e às virações errantes

Lançou dilúvios de harmonia! O gozo
Ao pranto sucedeu. As férreas horas
Em desejos alados se mudaram.
Noites fugiam, madrugadas vinham,
Mas sepultado num prazer profundo
Não te deixava o berço descuidoso,
Nem de teu rosto meu olhar tirava,
Nem de outros sonhos que dos teus vivia!

Como eras lindam! Nas rosadas faces
Tinhas ainda o tépido vestígio
Dos beijos divinais, - nos olhos langues.
Brilhava o brando raio que acendera
A bênção do Senhor quando o deixaste!

Sobre teu corpo a chusma dos anjinhos,
Filhos do éter e da luz voavam,
Riam-se alegres, das caçoilas níveas.
Celeste aroma te vertendo ao corpo!

E eu dizia comigo:- teu destino
Será mais belo que o cantar das fadas
Que dançam no arrebol, - mais triunfante.
Que o sol nascente derribando ao nada
Muralhas de negrume!... Irás tão alto
Como o pássaro-rei do Novo Mundo!

Ai! Doido sonho!... Uma estação passou-se
E tantas glórias, tão risonhos planos.
Desfizeram-se em pó! O gênio escuro
Abrasou com seu facho ensangüentado
Meus soberbos castelos. A desgraça
Sentou-se em meu solar, e a soberana.
Dos sinistros impérios de além-mundo
Com seu dedo real selou-te a fronte!

Inda te vejo pelas noites minhas,
Em meus dias sem luz vejo-te ainda,
Creio-te vivo, e morto te pranteio!...
Ouço o tanger monótono dos sinos,
E cada vibração contar parece
As ilusões que se murcham contigo!

Cheias de frases pueris, estultas,
O linho mortuário que retalham
Para envolver teu corpo! Vejo esparsas
Saudades e perpétuas sinto o aroma
Do incenso das igrejas, ouço os cantos.
Dos ministros de Deus que me repetem
Que não és mais da terra!... E choro embalde.

Mas não! Tu dormes no infinito seio
Do Criador dos seres! Tu me falas
Na voz dos ventos, no chorar das aves,
Talvez das ondas no respiro flébil!
Tu me contemplas lá do céu, quem sabe?
No vulto solitário de uma estrela.

E são teus raios que meu estro aquece!
Pois bem! Mostra-me as voltas do caminho!
Brilha e fulgura no azulado manto,
Mas não te arrojes, lágrima da noite,
Nas ondas nebulosas do ocidente!

Brilha e fulgura! Quando a morte fria
Sobre eu sacudir o pó das asas,
Escada de Jacó serão teus raios
Por onde asinha subirá minh'alma.

 O Passado...

O salão da frente recende a cravo.
Um grupo de gente moça
 Se reúne-se ali.
"Clube Literário Goiano". 
Rosa Godinho.
Luzia de Oliveira.
Leodegária de Jesus,
A presidência.

Nós, gente menor,
Sentadas, convencidas, formais.
Respondendo à chamada.
Ouvindo atentas as leituras da ata.
Pedindo a palavra.
Levantando idéias geniais.

Encerrada a sessão com seriedade,
Passávamos à tertúlia.
O velho harmônio, uma flauta, um bandolim.
Músicas antigas. Recitativos.
Declamavam-se monólogos.
Dialogávamos em rimas e risos.

D.Virgínia. Benjamim.
Rodolfo. Ludugero.
Veros anfitriões.
Sangrias. Doces. Licor de rosa.
Distinção. Agrado. O Passado...

Homens sem pressa,
Talvez cansados,
Descem com leva
Madeirões pesados,
Lavrados por escravos
Em rudes simetrias,
Do tempo das acutas.
Inclemência.
Caem pedaços na calçada.
Passantes cautelosos
Desviam-se com prudência.
Que importa a eles o sobrado?

Gente que passa indiferente,
Olha de longe,
Na dobra das esquinas,
As traves que despencam.
-Que vale para eles o sobrado?

Quem vê nas velhas sacadas
De ferro forjado
As sombras debruçadas?
Quem é que está ouvindo
O clamor, o adeus, o chamado?...
Que importa a marca dos retratos na parede?
Que importam as salas destelhadas,
E o pudor das alcovas devassadas...
Que importam?

E vão fugindo do sobrado,
Aos poucos,
Os quadros do Passado.


Todas as vidas

Vive dentro de mim
Uma cabocla velha
De mau-olhado,
Acocorada ao pé do borralho,
Olhando pra o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...

Vive dentro de mim
A lavadeira do Rio Vermelho,
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
Pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.

Vive dentro de mim
A mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
Toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.

Vive dentro de mim
A mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
Desabusada, sem preconceitos,
De casca-grossa,
De chinelinha,
E filharada.

Vive dentro de mim
A mulher roceira.
– Enxerto da terra,
Meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos.
Seus vinte netos.

Vive dentro de mim
A mulher da vida.
Minha irmãzinha...
Tão desprezada,
Tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fado.

Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida –
A vida mera das obscuras.

Velho

Estás morto, estás velho, estás cansado!
Como um suco de lágrimas pungidas
Ei-las, as rugas, as indefinidas
Noites do ser vencido e fatigado.
Envolve-te o crepúsculo gelado
Que vai soturno amortalhando as vidas
Ante o repouso em músicas gemidas
No fundo coração dilacerado.
A cabeça pendida de fadiga,
Sente a morte taciturna e amiga,
Que os teus nervosos círculos governa.
Estás velho estás morto! Ó dor, delírio,
Alma despedaçada de martírio
Ó desespero da desgraça eterna.

Cora Coralina




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